A revolução vitoriosa
se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição
popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do
Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se
legitima por si mesma. *Ato Institucional, 9 de abril de abril de 1964.
Caracterizar
o movimento de abril de 1964 como golpe ou revolução é muito mais que uma divergência
descritiva, mas principalmente uma divergência de valoração da deposição do
presidente João Goulart. Os milicos de pijama e demais defensores do regime
militar se referem ao fato como Revolução, enquanto a quase totalidade dos estudiosos
do assunto (entre os me incluo), jornalistas e cidadãos em geral referem-se ao
fato como “golpe”.
Mas, afinal, de onde veio a ideia de
chamar aquilo de “revolução”? O termo revolução surge no preâmbulo do Ato
Institucional (documento que institucionalizava os poderes do “Comando Supremo
da Revolução”). Esse ato fora escrita por Francisco Campos, pensador autoritário
com feições fascistas que escrevera a Constituição de 1937, que deu início a
ditadura varguista.
Os conceitos de revolução e poder
constituinte, empregadas por Campos, foram retirados da obra do Abade de Syeiès,
um dos principais líderes no início da revolução francesa (autor do célebre “Que
é o Terceiro Estado”). O pensador francês argumentava que somente a nação (isto
é, o terceiro estado) poderia dar uma constituição ao país. E como o terceiro
estado não o fizera, a França não tinha, portanto, uma constituição legítima. Daí
o abade defender que os representantes do Terceiro Estado, eleitos para a
Reunião dos Estados Gerais, se investissem do poder constituinte. Este poder seria
maior do que as decisões corriqueiras de governo, posto que seria incumbido de
criar as normas jurídicas referentes a organização do Estado e a definição dos
direitos e deveres dos cidadãos.
Ora, de cara saltam duas diferenças entre
os contextos. O primeiro é que no Brasil existia uma Constituição, promulgada
democraticamente em 1946 e em pleno vigor em 1964. A segunda diferença é que
Sieyès reivindicava o poder constituinte para aqueles que foram eleitos pelo
povo (claro que o conceito de povo em 1789 não é o mesmo que temos hoje) contra
os representantes do primeiro e segundo estado. Já a norma jurídica escrita por
Francisco Campos, defendia que o poder constituinte estava nas mãos de um
comando militar, formado por profissionais que não nem foram eleitos pelo povo
nem deveriam exercer qualquer atividade política.
Para além disso, existe a
definição bastante aceita de que revoluções são movimentos que transformam as
estruturas políticas, econômicas e sociais. Conforme citado por Elio Gaspari,
ninguém menos que Ernesto Geisel reconheceu:
O que houve em 1964 não foi
uma revolução. As revoluções fazem-se por uma idéia, em favor de uma doutrina.
Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um
movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a
corrupção.
A tentativa de dar ares de legalidade ao
golpe, a tal “revolução”, também tinha outra faceta. Ora, as forças armadas são
regidas pelos princípios da hierarquia e da disciplina. No topo dessa
hierarquia estava o presidente e, logo abaixo (nomeados por ele) estavam os
comandantes das forças (os ministros militares). Portanto, participar de uma
conspiração que contra o governo, implica, forçosamente na subversão da
hierarquia militar. Como justificar essa quebra da hierarquia e da legalidade?
O
dilema fora formulado pelo general Castelo Branco, dias antes do golpe. E se o
presidente agisse ilegalmente, de que lados deveriam ficar os militares? Do
lado da legalidade e contra o presidente (portanto, contra a hierarquia
militar), ou do lado do presidente contra a legalidade (mas respeitando a
hierarquia)? A resposta do general era que deveriam ficar com a legalidade e
contra o presidente. Na prática, porém, essa era uma falsa questão, tendo em
vista que Jango não cometeu nenhuma ilegalidade, mesmo nos momentos finais do
regime.
Goulart até cometeu erros na condução dos assuntos militares, mas como
presidente ele tinha até o direito de errar (desde que o erro não implicasse em
ilegalidade). Mesmo que houvesse ilegalidade, não cabia as forças armadas julga-lo,
mas sim ao congresso ou ao STF, de acordo com a acusação e nos termos da Constituição.
Na
semana anterior ao golpe, marinheiros marcaram a comemoração do aniversário de
fundação da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais. Como seria
previsível, o almirante Silvio Mota (comandante da Marinha) ordenou a prisão
dos envolvidos. Entretanto, a tropa enviada para prender os amotinados acaba se
recusando a cumprir as ordens e cerca de trinta fuzileiros ainda passam para ao
lado dos amotinados. Enquanto os dois lados conferenciavam, chegavam ordens de
Jango para que o prédio não fosse invadido. Sentindo-se desprestigiado e impedido
de manter a hierarquia na Marinha, o Almirante Frota pede demissão. O seu
sucessor optou por anistiar os envolvidos, para a indignação do almirantado.
Vale
lembrar que naqueles tempos o país vivia intensa mobilização política de
estudantes (através da UNE),
trabalhadores urbanos (CGT) e trabalhadores rurais (ligas camponesas).
Representantes de todos esses setores faziam parte da Frente de Mobilização
Popular, orientação de esquerda (incluindo comunistas) e seguiam a liderança de
Leonel Brizola. Toda essa mobilização chegara aos suboficiais das forças armadas,
que passaram a reivindicar desde o direito ao voto a melhores soldos e
condições de trabalho. O próprio cabo Anselmo, líder dos amotinados, era um
universitário membro da UNE que entrara na Marinha para fazer política.
Faltou
a Jango e a esquerda de modo geral a exata noção da gravidade daqueles fatos.
Enquanto os membros da FMP apoiavam e participavam das organizações de
suboficiais, Jango se limitava a não punir a indisciplina. Entretanto, mesmo
isso já era considerado demais para os miliares, tendo em vista que a defesa da
hierarquia é algo definidor do que é ser um militar.
Ainda
assim, não havia qualquer conflito entre o presidente e a legalidade. Só havia
dois lados para os militares em 1964. De um lado, o presidente e a legalidade,
de outra a conspiração militar (essa também uma escandalosa quebra da hierarquia).
Portanto,
não faz qualquer sentido falar em revolução, nem em poder constituinte, nem em
democracia para se referir ao movimento militar de 1964. Golpe é a melhor
definição. Sobre as contradições de militares e juristas autoritários, o
humorista Mauro Porto (sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta) escreveria
Como eu dizia linhas acima, uma
das mais constantes manifestações do Festival de Besteira, na sua fase
presente, é a mania de querer explicar o que não tem explicação. Muito melhor é
não dar explicação nenhuma.